" Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, são elas Maria's que vem e que passam num doce balanço a caminho do mar.."

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O VERÃO DE 81


"Eu tinha 19 anos e nenhum plano para as férias daquele verão. Fazia faculdade de propaganda,
não estava namorando e andava roxa por um programa diferente, até que alguém da nossa turma deu a ideia de conhecermos uma praia em Santa Catarina chamada Bombinhas. Era janeiro. Não lembro exatamente quem tomou a iniciativa de alugar a casa, só sei que éramos 10 – cinco homens e cinco mulheres. Os guris foram na frente, de carro. Nós, gurias, chegamos um dia depois, de ônibus.  Desembarcamos em Florianópolis e o Fernando foi nos buscar na rodoviária num Fiat 147 vermelho. Bombinhas pertence ao município de Porto Belo. Disso eu sabia, já estivera lá com meus pais numa viagem alguns anos antes, num inverno gelado, e  só do que eu lembrava era de um lugar ermo, mas agora seria diferente. E foi.


Antes que a malícia corra solta: apesar de formarmos cinco casais, ninguém era namorado de ninguém.
Minto: a Katia e o Geraldo estavam começando a ficar, mas tudo na maior inocência. De resto, éramos mesmo uma turma de amigos. O clima era do seriado Friends, versão praiana. Além do Geraldo e do Fernando, havia o Theo, o Caco e o Serginho. Além da Katia, havia a Neca, a Karin, a Claudia e eu.     


Se você frequenta a Bombinhas de hoje, não a reconheceria. No verão de 81, era terra de ninguém. Na rua 
principal havia um ou dois botecos, um posto telefônico e uma farmácia. Nenhum hotel, nem supermercado, nem lojas, nem restaurantes, apenas as casas de madeira dos poucos nativos. Na beira da praia, mesma coisa: só alguns poucos casebres de madeira onde viviam os pescadores locais. Num dia de sol a pino, de ponta a ponta da praia, contava-se no máximo uns 15 guarda-sóis na areia, de outros aventureiros como nós. Era praticamente uma praia privativa.


Onde é que eu estava mesmo? Chegando com as gurias no Fiat 147 vermelho. Saímos da BR e então passamos por Porto Belo, onde fizemos compras no único supermercado que havia. Depois atravessamos lentamente os morros que dão acesso às praias. A estrada era medonha, de terra batida e cheia de desníveis. Passamos por Bombas, fantasmagórica, e chegamos finalmente em Bombinhas. Estávamos empoeiradas e cansadas. Largamos nossas mochilas no casebre e fomos direto pro mar. Aquele mar esmeralda. O Caribe logo ali no Estado vizinho.  
Nossa casa era de madeira pintada de branco, com um pequeno jardim na frente. Dentro, havia uma minúscula antesala com um sofá e uma mesinha de fórmica. Ao lado, ficava o aposento maior: a cozinha. Havia um fogão, uma geladeira e uma mesa grande com algumas cadeiras. Três portas conduziam aos três quartos, e o único banheiro ficava mais ao fundo. Quem dormiria com quem?
As donzelas resolveram que ficariam as cinco no mesmo quarto, enquanto os guris poderiam se dividir entre os outros dois. E no primeiro dia foi assim. Três guris num quarto, dois em outro, e cinco malucas amontoadas num cubículo onde havia uma cama de casal. A ideia era revezar: duas na cama e três no chão, em colchonetes. Nossa integridade estava assegurada. Essa decisão durou exato um dia. Nos outros, não me pergunte onde dormíamos. Era cada um por si, sem frescura, sem lugar marcado, sem clube do bolinha e luluzinha, todos dividindo camas, colchonetes, redes. Tinha gente que dormia na cozinha, na sala, no jardim, na beira da praia. Onde caíamos, ficávamos. Era a graça da coisa.
Acredite se quiser: tudo na maior pureza. Promiscuidade zero. Só farra.
Nos fundos da nossa casa ficava um outro pequeníssimo cômodo, do tamanho de uma guarita de salva-vidas. Era ali que dormia o proprietário da casa, um pescador chamado Sabão. Foi para onde ele se mudou com a mulher e as duas filhas pequenas durante os dias em que alugou a casa dele pra nós. Era alto, loiro, esquelético, um príncipe escandinavo com a pele curtida pelo sol, maltratado pela pobreza, mas totalmente de bem com a vida. Discreto, não perturbava em nada. Saía de manhã para pescar em seu barco e à tardinha voltava. Muitas vezes, vendia seu peixe para nós, e logo descobrimos que ele sabia preparar uma caipirinha como ninguém, e de pescador diurno passou a barman noturno, extraindo mais uma fonte de renda daquela turma de gaúchos que tinha fome (e sede) de diversão.
Durante os 10 dias em que ficamos em Bombinhas, choveu exatamente nada. Nuvem, também não lembro de ter visto. Acordávamos, tomávamos o café da manhã e, depois de dar exaustivos cinco passos para fora da casa, colocávamos os pés na areia branca, com aquele marzão em frente só pra nós. Nadávamos, caminhávamos na praia, jogávamos frescobol e até conseguimos descolar uma rede para improvisar uma quadra de vôlei. No final da tarde, dois ou três de nós iam até Porto Belo comprar mantimentos.Alguns iam até o posto telefônico para ligar para Porto Alegre e saber notícias do mundo. Não havia tevê na casa. Apenas um pequeno toca-fitas. Sim, ouvíamos música através de fitas K-7. Não existia celular, nem DVD, nem notebooks. Éramos 10 Robinson Crusoe.
Um dia resolvemos explorar o território em volta. Depois de muito sobe e desce por estradinhas íngremes, de muito comer poeira e de cruzar com bichos estranhos pelo caminho, descobrimos uma praia ainda mais selvagem, Quatro Ilhas, onde tomamos o banho de mar mais inesquecível dessa temporada.  
À noite, sob uma luz fraca, brincávamos de mímica, fazíamos torneios de canastra e improvisávamos uma churrasqueira na beira da praia: cavávamos um buraco, acendíamos o fogo e grelhávamos os camarões e os peixes que o Sabão trazia. O luau só não era completo porque ninguém lembrou de levar violão. Ninguém tocava, que eu saiba. Mas havia uma gaita, acho.
Um dia de manhã cedo, surpresa: estávamos todos na beira da praia quando vimos um barco se aproximando. Era uma lancha. Uma lancha realmente grande, com um piloto. O moço chegou bem perto, saltou da lancha e veio até nós para se apresentar. Ninguém conseguia acreditar: o pai de um dos guris do grupo era amicíssimo de um empresário de Florianópolis, o dono da lancha, que gentilmente havia cedido seu barco e incumbido seu funcionário de ficar o dia todo à nossa disposição. Era tudo o que precisávamos: sair da rotina! Fechamos a casa e subimos todos na lancha. Fizemos um longo passeio até Itapema e no caminho encontramos prainhas desertas que convidavam para um pit stop e um mergulho. Na volta, a lancha atracou no cais de Porto Belo e almoçamos às quatro da tarde por conta do tio rico – a essa altura o empresário já havia virado tio – no inigualável restaurante Petiskão, onde entramos cantando uma marcha de Adoniran Barbosa e saímos mais pra lá do que pra cá, de tanta cerveja. Tudo bem, não estávamos dirigindo mesmo.
Ao chegar em casa, todos queriam apenas um banho e descansar, mas não podíamos prever que a noite seria ainda mais agitada do que o dia. Dessa vez, por um motivo nada agradável. A movimentação de pescadores no fundo da nossa casa pressagiava o pior. Foi com tristeza que soubemos que Sabão havia levado um choque fatal. Morreu eletrocutado nos fundos da nossa casa – melhor dizendo, da casa dele.
Em choque ficamos nós. Quantos anos ele teria? Não mais que 30. O que podíamos fazer pela família? Os guris acompanharam o corpo até Porto Belo e nós ficamos para dar assistência às duas pequenas meninas, pequenas mesmo. Não lembro da mulher do Sabão, mas devia estar cuidando dos trâmites em Porto Belo também. Passamos a noite praticamente em claro, atordoados com aquele súbito desaparecimento.
O dia seguinte foi de uma tranquilidade respeitosa, todos mais silenciosos do que de costume, conversando em voz baixa na beira da praia, mas retomando aos poucos o nosso cotidiano de estudantes em férias, faltava muito pouco para ir embora.    
À noite, mais um torneio de canastra. Todos com as cartas na mão, comprando e descartando, baixando trincas, sequências, até que o primeiro de nós bateu. E na hora de pedir para lhe alcançarem o morto, não teve dúvida: “Me passa o Sabão”. Foi a primeira gargalhada depois da tragédia, aquele riso nervoso diante da piada politicamente incorretíssima. Passados 30 anos, até hoje, quando nos reencontramos, “me passa o Sabão” é a senha para chamarmos as lembranças de volta.
Então chegou o dia de retornar para casa e tocar cada um a sua vida. Fernando hoje mora em São Paulo. Karin morou por lá também, mas voltou. Claudia mora em Florianópolis e é atriz de teatro. Theo é velejador. Serginho rodou o mundo todo e semana passada fomos avisados que está em Porto Alegre. Caco é engenheiro. Neca é pedagoga. Katia e Geraldo, que começaram essas férias numa ficação inocente, comemoraram bodas de prata ano passado. E eu estou aqui contando essa história.
Férias, há de diversos tipos. Mas aquele verão de 81 nunca saiu da nossa memória porque, além de ter selado uma amizade que dura até hoje, foi a concretização de um ideal que hoje poucos conseguem atingir. Nós passamos 10 dias em contato direto e ininterrupto com a natureza, numa praia paradisíaca, limpa, pouco habitada e silenciosa, sem conexão com aquilo do qual queríamos realmente tirar férias: da bagunça da cidade, dos compromissos urbanos e de nossas adoradas famílias, que, como todas as famílias, eram controladoras. Estávamos uns com 18 e outros com 19 anos, comemorando a maturidade recém conquistada e nos preparando para a vida que cada um construiria a partir dali. Cinco garotos e cinco garotas 100% wireless, no sentido mais verdadeiro do termo.
Se suas férias de verão não puderem ser assim, que ao menos tenham esse espírito."

Marthinha Medeiros


beijo estalado,
MariaBébes

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